sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Primer, Predestinado e Donnie Darko - Nunca viajaremos no tempo para consertar os erros do passado.

 

(Crédito: https://i.pinimg.com/originals/f3/0c/8d/f30c8dc9802556568c2e83782c1c79ae.jpg)

 

Entre uma aula e outra de literatura fantástica, meus alunos perguntam sobre ficção científica e, dentre esses temas, sempre falamos de viagem no tempo e como é difícil lidar com os enredos de certos filmes.

Os três mais recorrentes são Primer, Predestinado e, claro, o pior de todos, Donnie Darko.

A primeira coisa que pergunto é "Por que é que se viaja no tempo?" Quase invariavelmente a resposta é "para consertar os erros do passado".

Ora, vejam só! Erros do passado. Como se nossos antepassados só fizessem merda e nós, os futuroides, é que sabemos a decisão mais acertada a ter sido tomada no passado. Eu redarguo (finalmente arrumei uma desculpa para conjugar esse verbo na 1a pessoa do singular) "Será que nossos descendentes de daqui a mil anos não esfregariam na nossa cara que nós fizemos uma merda tão grande que eles é que estão pagando por isso sem terem culpa?"

Não, minha gente. Não se viaja no tempo para consertar erros, mas sim, para obter ganhos pessoais advindos de uma informação privilegiada. Nem mesmo em  Jornada nas Estrelas IV, quando a tripulação da Enterprise volta do século XXIV aos anos 1980 para levar um casal de baleias jubarte ao seu presente para enfrentarem uma ameaça alienígena está-se consertando um erro do passado: é puro uso de informação privilegiada para resolver um problema que afeta a vida cotidiana da própria tripulação. Se assim não fosse, teriam impedido a extinção das jubartes - mas isso levaria séculos de esforços e Hollywood não se dispõe a apoiar a ideia de morrer antes de conferir o resultado de seus esforços. O futuro só importa se EU estiver nele. Se não, que se fodam as próximas gerações. Capitalismo, bebê.

Por isso, esses três filmes que meus alunos acham tão difíceis de entender, intrigam a maioria das pessoas. Porém, considerando essa reflexão, fica fácil. Acompanhem.

Prime: dois amigos descobrem como viajar no tempo, mas precisam ficar incomunicáveis durante o tempo anterior à viagem no tempo, porque é nesse período que seus "eus" do futuro estarão agindo em função da informação privilegiada que detêm para ganhar dinheiro na bolsa. 

Pensem assim: se eu quiser usar o resultado da megasena da virada, cujo sorteio será na noite de 31 de dezembro para 1o de janeiro, eu preciso 1) assistir ao sorteio para ter o resultado; 2) viajar no tempo num horário em que ainda possa apostar (digamos, até 17h). Antes de viajar (e aqui é que está o problema) você tem de ficar escondido, pois é nesse momento que o seu eu do passado estará fazendo a aposta e ele é que será você daqui para frente, pois você entrará na máquina para sê-lo a partir das 17h, gerando um looping controlado. 

Em suma, vocês não podem se encontrar nem agir no mundo ao mesmo tempo porque, ao "mudar de ideia no meio do caminho", um terceiro ou quarto "eu" será criado, seja porque você entrou na máquina sabendo o que o seu eu que viajou fez, seja porque você o contatou influenciando-o, seja porque você desistiu de entrar na máquina sabendo que já viajou. E é exatamente isso o que nossos personagens fazem em Primer: avisam a si próprios para mudarem de planos e, quando se dão conta, há mais de um deles ao mesmo tempo circulando pela cidade e eles não sabem qual deles é esse "eu" nem o que ele sabe nem o que pretende. Em seguida, acompanhamos uma série de assassinatos (sim, os mesmos personagens são assassinados várias vezes), inclusive dentro da máquina do tempo, gerando toda a confusão na cabeça do espectador. Na verdade, o que ocorre é que um dos "eus", que não se comunica com os outros, está matando todas as cópias para "zerar" a linha do tempo e finaliza gravando uma mensagem ao seu "primeiríssimo eu" do passado (primer), contando toda a história e dizendo "não participe dessa coisa e abandone o projeto".

O segundo filme, Predestinado, é baseado num conto de Robert Anson Heinlein que, por acaso, eu já tinha lido. Trata-se do problema do looping temporal. Não importa o quanto você tente mudar o passado, você sempre terá de viajar no tempo novamente em algum ponto da vida para que tudo ocorra exatamente como você quer (inclusive há um filme chamado Looper) - e fatalmente seus planos serão frustrados.

O conto de Heinlein e o filme trabalham com a ideia de SUBSTITUIÇÃO. Sim. Eu preciso colocar outra pessoa em meu lugar para eu sair da linha do tempo e viver impunemente com as informações privilegiadas de que disponho, nem que para isso eu tenha de encontrar uma pessoa nascida mulher e que, após uma cirurgia, descubra-se biologicamente homem, induzindo-a a engravidar a si mesma no passado e colocar a criança fruto desse relacionamento no lugar em que a mãe seria entregue para adoção quando esta era um bebê.

Calma, não se perca. Temos aqui uma pessoa que nunca existiria sem que a viagem no tempo fosse possível. Uma pessoa totalmente ZERADA, podendo assumir a identidade de alguém que planeje evitar um looping eterno sem ter que morrer antes da primeira viagem no tempo.

A pessoa que engravidou a si mesma passa a cumprir missões para a organização de viagens no tempo NO LUGAR DO AGENTE ORIGINAL a ponto de, num acidente, ter seu rosto desfigurado e, após uma operação, ficar com O MESMO ROSTO DO AGENTE ORIGINAL.  Por fim, o agente original encontra seu alter ego em seu presente e o assassina, fugindo do looping eterno e da responsabilidade pelos crimes que cometeu para matar terroristas antes que cometessem atentados terroristas por meio de atentados forjados! Sabe aquela história de que morrer alguns inocentes, desde que para salvar o conjunto da humanidade, tudo bem? Só que não.

Por fim, Donnie Darko.

Uma história tão poluída narrativamente que os espectadores não percebem a simplicidade do argumento: se você não tivesse mudado o passado (ou seja, não ter morrido esmagado por uma turbina de avião dentro do seu próprio quarto), nada disso teria acontecido.

Neste filme, não sabemos como Donnie viaja no tempo nem como sabia que ia morrer se tivesse dormido em seu quarto naquela noite. O que acontece é que o menino tímido e discreto passa a ter uma atitude mais afirmativa, tornando-se praticamente seu oposto e cometendo atos tão perigosos quanto irresponsáveis que geram a presença de alguém (o sujeito da máscara de coelho) que sabe o que aconteceu e passa o tempo todo perseguindo o protagonista, como se fosse sua sombra, cobrando a reparação pela alteração provocada na linha do tempo.

Todo o resto da história são as cagadas que Donnie comete por excesso de confiança diante da vitória sobre a morte. As implicações dos atos do protagonista se acumulam a tal ponto que não sabemos se ele decide que é melhor morrer do que enfrentar as consequências de suas ações ou se finalmente se conscientizou de que seu lugar não é mais entre os vivos.

O final, já era de se esperar: Donnie é esmagado pela turbina de avião e sua morte é a única tragédia que aquela comunidade suburbana estadunidense conhecerá e não todo o terror que ele causou.

Conclusão

Eu não pretendo, com essas análises, diminuir o valor das obras, nem o interesse dos espectadores nelas. Apenas comentar que histórias sobre viagens no tempo só ficam complicadas quando se tenta ocultar o verdadeiro motivo pelo qual gostaríamos de viajar no tempo: obter uma vantagem pessoal pela posse de uma informação privilegiada. Nada mais, nada menos. 

Você viu algum filme sobre viagem no tempo e teve a impressão de passar por uma enganação? Bom, pode ser que a história tenha sido simplesmente mal contada - o que não é difícil, pois uma simples alteração num passado desconhecido pode levar a alterações imprevisíveis num futuro já conhecido. É por isso que muitos escritores, roteiristas, diretores e produtores inventam suas próprias teorias de viagem no tempo para facilitar o enredo. O problema é quando essa pseudoteoria escapa à lógica mais elementar da viagem no tempo: uma única mudança pode resultar numa realidade totalmente diferente da conhecida ou prevista pelo viajante e as sucessivas tentativas de remendar os imprevistos só pioram as coisas. 

Abraço e até mais!